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A Chave para a Educação Inclusiva de Qualidade na Terceira Década de Timor-Leste ...

como Nação Independente


Por: Dra. Kirsty Sword Gusmão, AO

Embaixadora da Boa Vontade para a Educação da República Democrática de Timor-Leste


5 de Agosto, 2023


Há treze anos, fiz uma visita a Muapitine, uma pequena aldeia no Município de Lautém, para lançar o programa-piloto “Educação Multilingue Baseada na Língua Materna” (Mother Tongue-Based Multilingual Education - MTB-MLE), uma colaboração entre a Comissão Nacional de Timor-Leste para a UNESCO e o Ministério da Educação. No decorrer da visita, sentei-me no chão de uma das salas de aula da Escola Primária de Muapitine, para brincar com os alunos do 1.º ano e para conversar com eles sobre as suas experiências como alunos que tinham acabado de iniciar a sua caminhada no ensino formal. Embora eu tivesse plena consciência de que para a maioria dos alunos desta comunidade a sua primeira língua era o Fataluco, confesso que fiquei um pouco espantada quando tentei envolver os alunos numa conversa em Tétum – perguntas simples como “Como te chamas?” – e eles foram incapazes de me responder. Eu perguntei-me a mim mesma: “Como é que podemos esperar que estas crianças aprendam conteúdos curriculares, se elas não entendem a língua falada pelo professor?” Este grupo de crianças da Escola Primária de Muapitine teve a sorte de ser instruído na língua que falavam em casa com os pais e, assim, aprender a ler e a escrever com bastante facilidade. Partindo desse alicerce, a base sólida na sua primeira língua ajudá-los-ia a avançar para a literacia e numeracia nas línguas oficiais e noutras línguas importantes. No entanto, em muitas áreas rurais de Timor-Leste, um grande número de alunos dos níveis pré-escolar e básico abandona a escola ou é repetente, devido à enorme barreira colocada à compreensão e à aprendizagem representada pela língua de instrução na sala de aula.


As estatísticas dos Censos de 2010 e outras mais recentes evidenciam que, em alguns municípios, a grande maioria da população com 5 ou mais anos de idade não sabe falar, ler e escrever nas duas línguas oficiais e fala apenas uma língua local em casa.


Um estudo conduzido pelo Banco Mundial em 2009, conhecido como “Avaliação da Leitura nos Anos Iniciais” (“Early Grade Reading Assessment”), constatou que muitas crianças passam anos nas escolas básicas em Timor-Leste sem aprender a ler. Mais de 70% dos alunos no final do 1.º ano de escolaridade não conseguiu ler uma única palavra de uma curta passagem de um texto simples, que lhes foi pedido que lessem em Tétum ou em Português.


Como Embaixadora da Boa Vontade para a Educação de Timor-Leste, achei esta situação extremamente preocupante. Como educadora, sei bem que, quando as crianças não conseguem aprender a ler nos primeiros anos do ensino formal (1.º e 2.º anos de escolaridade), tal facto afeta negativamente a sua capacidade de aprendizagem em todas as áreas de estudo nos anos de escolaridade subsequentes.


Essa triste realidade obrigou-me a conduzir a minha própria pesquisa sobre as experiências de outras nações multilingues na região do Sudeste Asiático e noutras regiões.


Há muito tempo que a UNESCO promove a Educação Multilingue Baseada na Língua Materna (Mother Tongue-Based Multilingual Education - MTB-MLE) em todo o mundo, pois uma grande quantidade de pesquisas e numerosos estudos provaram que as línguas locais desempenham um papel vital na promoção da aprendizagem das crianças, melhoram as taxas de conclusão escolar e facilitam a criação de uma ponte eficaz entre a casa e a escola.



A Organização dos Ministros da Educação do Sudeste Asiático (SEAMEO), através do seu projeto intitulado “A Língua Materna como Língua de Instrução que Cria a Ponte: Políticas, Estratégias e Advocacia” (“Mother Tongue as Bridge Language of Instruction: Policies, Strategies and Advocacy”), defende fortemente o uso das línguas locais nos primeiros anos do ensino formal. Os participantes de Timor-Leste que participaram na Conferência de Línguas da SEAMEO em julho de 2008 recomendaram que as suas próprias autoridades educativas apoiassem ativamente o ensino da primeira língua, para desenvolver a compreensão e a aprendizagem das crianças. Durante a conferência, eles conheceram as experiências de nações como Moçambique, Camboja, Filipinas, Guatemala, Nepal e Papua-Nova Guiné, na implementação da MTB-MLE como forma de aumentar o acesso à educação e de contribuir para a preservação das línguas locais, enquanto uma componente fundamental da identidade cultural de uma nação.


O princípio de ensino de literacia na primeira língua de homens e mulheres comuns, como meio de os tirar da pobreza e da ignorância, tem um lugar na história de resistência de Timor-Leste. As campanhas de literacia da Fretilin realizadas em 1975 reconheciam o papel das línguas nativas de Timor-Leste, numa altura em que o país se preparava para se livrar das algemas coloniais. Em 2023, muitas dessas mesmas línguas nativas correm o risco de extinção num futuro próximo, caso o Estado não se esforce para as defender e promover, como prescreve a Constituição de Timor-Leste.


Como Embaixadora da Boa Vontade para a Educação e Presidente da Comissão Nacional de Educação, em novembro de 2009, convidei quatro especialistas de Portugal e dois da Austrália para participarem de uma missão “Língua na Educação” (“Language in Education”), de modo a estudarem e fornecerem recomendações sobre a política de língua de instrução para os níveis da educação pré-escolar e ensino básico (primário). Após 7 dias de trabalho intensivo, incluindo reuniões com professores, alunos, linguistas e líderes locais e nacionais, a equipa apresentou as seguintes recomendações-chave:


No primeiro ciclo do ensino básico (1.º-3.º anos de escolaridade), devem dar prioridade ao uso da língua local, para apoiar a introdução do Tétum. O Português deve ser introduzido primeiro oralmente através de canções, da contação de histórias, do teatro e da dança. No final do ciclo, as crianças devem ser capazes de ler, escrever e comunicar com confiança em Tétum e de começar a aprender a ler e escrever em Português.


As conclusões desta missão e as suas recomendações motivaram-me a trabalhar com a Comissão Nacional de Educação e com o Ministério da Educação, para estabelecer um projeto-piloto MTB-MLE, com o objetivo de testar esta metodologia em três comunidades rurais nos Municípios de Manatuto, Oe-cusse e Lautém. Com um orçamento minúsculo, conseguimos trabalhar com linguistas nacionais e internacionais e membros da comunidade nas três localidades, para desenvolver ortografias para as línguas Fataluco, Galolen e Baiqueno, uma série de livros de leitura simples e outros materiais didáticos em cada uma das línguas, formar professores em cada uma das dez escolas selecionadas de pré-escolar e básicas e conduzir um trabalho de advocacia a nível local e nacional. Este trabalho mínimo provocou alguma controvérsia a nível nacional! Algumas pessoas manifestaram a sua desconfiança quanto aos meus motivos para apoiar o programa-piloto de língua materna, acusando-me de pretender acabar com o Português como uma das línguas oficiais de Timor-Leste e como língua de ensino. Na realidade, o meu objetivo era melhorar a eficácia do ensino e aprendizagem do Português, através da implementação de uma metodologia que reconhecesse e valorizasse a primeira língua das crianças e a sua identidade como cidadãos de Timor-Leste.


Um filme curto produzido pela equipa do projeto-piloto na Escola Pré-Escolar Maina 1 no Município de Lautém em 2015 demonstra claramente a eficácia com que os alunos de 4-5 anos de idade foram capazes de adquirir competências de leitura e escrita na sua língua nativa Fataluco, após apenas 6 meses de ensino.



Uma avaliação do programa-piloto de língua materna (conhecido como “EMBLI” ou “Edukasaun Multilinge Bazeia ba Lian Inan” em Tétum), realizada por um especialista independente em 2015, teve como objetivo aferir a capacidade de leitura dos alunos e o seu domínio do conteúdo curricular, incluindo Matemática e Português, e a eficácia da metodologia MTB-MLE/EMBLI em geral. Os resultados afirmaram o seguinte:


• O desempenho dos alunos em Matemática foi 2,3 vezes maior do que nas escolas públicas regulares, onde a primeira língua não era a principal língua de ensino;

• Os alunos das escolas-piloto demonstraram um nível ligeiramente superior de compreensão em Português do que os alunos das escolas CAFE (cujo ensino é exclusivamente em Português), apesar do facto de, no 2.º ano, eles não terem ainda iniciado o ensino formal em Português;

• Academicamente, observou-se que a metodologia MTB-MLE acelera a aprendizagem das crianças em cerca de 1,5 a 2 anos.


O gráfico que se apresenta em seguida destaca alguns resultados-chave adicionais da avaliação:


Figura 1 – “Standard L2” refere-se às escolas públicas regulares que utilizam o Tétum e o Português como meio de instrução e “EMBLI” refere-se às escolas-piloto MTB-MLE.


Além disso, a avaliação analisou os custos relativos a educar os alunos de forma que se tornem leitores proficientes nos três modelos de educação (as escolas públicas regulares com o Tétum como meio de instrução, o modelo MTB-MLE que emprega a primeira língua como língua de instrução e o modelo exclusivo em Português das escolas CAFE):


Figura 2 - Os valores constantes nas barras verticais referem-se ao gasto individual por aluno em cada um dos programas. Os valores totais gerais em cada programa são apresentados na caixa de texto à direita.


Embora esta avaliação tenha demonstrado claramente a superioridade da metodologia MTB-MLE na promoção da aprendizagem das crianças e também os benefícios para o Estado, em termos de custos relativamente baixos de implementação, o relatório e as suas recomendações receberam uma atenção muito reduzida por parte dos responsáveis do Ministério da Educação e dos líderes nacionais. Várias comunidades nas áreas adjacentes às escolas-piloto de língua materna solicitaram que o Ministério da Educação expandisse o programa para as suas próprias escolas, depois de terem testemunhado por si mesmas os seus benefícios para a aprendizagem das crianças. Ainda assim, a resposta do Ministério foi ampliar e elevar o investimento (quase 6 milhões de dólares anuais) nas escolas do programa CAFE, que ensinam o currículo nacional exclusivamente em Português, metodologia comprovadamente ineficiente em inúmeros estudos, pelo facto de os novos conteúdos curriculares serem ensinados numa língua que não é totalmente dominada pelos alunos. O orçamento anual do programa MTB-MLE é de aproximadamente US$100.000 ou 2% do orçamento anual do programa CAFE.


O IX Governo Constitucional pode melhorar o sucesso académico ao nível dos ensinos secundário e superior, através da aposta em políticas que ajudem os alunos da educação pré-escolar e do ensino básico a adquirir competências de leitura nas línguas que falam em casa e, desse ponto em diante, a transferir essas competências para a literacia em Português e noutras línguas de difusão internacional como o Inglês. As pesquisas científicas[1] comprovam que as crianças que conseguem tornar-se leitores proficientes ao completarem o terceiro ano de escolaridade têm quatro vezes mais probabilidades de concluir os seus estudos e de obter sucesso nas suas vidas profissionais.


Igualmente importante, o novo Governo tem agora uma oportunidade de ouro para cumprir os seus próprios objetivos de melhorar a qualidade da educação e de promover a inclusão e a justiça social na sala de aula e em todo o país. A solução é simples e económica, não exigindo que Timor-Leste olhe para além das suas próprias fronteiras. A solução não requer qualquer experiência estrangeira. Confiem em vocês próprios e LEIAM… para seguirem em frente![2]


[1] Collier & Thomas, 2017.

[2] O partido atualmente no Governo, o CNRT, tem o seu slogan “Fiar-an, la’o ba oin!” (Confiem em vocês próprios, sigam em frente!)


 




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